Por Marcelo Dolzany da Costa
Dias atrás um conceituado jornal publicou artigo de um promotor de justiça do interior mineiro que também se qualifica como pesquisador em gestão judicial. A pretexto de fazer coro a vozes destemperadas, mas felizmente isoladas, de um dos lados da Praça dos Três Poderes, o articulista debocha da criação de um Tribunal Federal para Minas Gerais e, com a genialidade de poucos iluminados, reinventa a roda para pregar uma volta a um passado centralizador e obscuro para sofismar que “a medida correta seria juntar todos em um único tribunal, com dezenas de desembargadores federais”. Depois achincalha com suprema heresia: ampliar os tribunais significa que a União “cria um outro órgão para julgar a si própria e seus órgãos em questões repetitivas”. Por último, cita números para dizer que “a Justiça Federal julga apenas matéria de direito” e que estas se resumem a “menos de cem temas”.
Não sei de onde vieram tais “verdades” do articulista, mas suspeito que ele se refira a um outro País ou outro Estado, jamais a estes brasis nem a estas Minas de inconfidentes e libertários. Mais um parágrafo e ele pregaria a extinção da Justiça Federal e a volta do Estado unitário que vigeu dentre nós até a proclamação da República. Faltou pouco.
A primeira aleivosia é a de que os juízes federais se ocupam apenas de “matéria de direito” e, assim, bastaria uma orientação superior de um grande tribunal em Brasília para que se pacificassem os conflitos. Mas esse sonhado tribunal já existe: é o Superior Tribunal de Justiça, cuja tarefa é uniformizar a interpretação do direito federal e também está congestionado. Agora não suspeito, mas tenho certeza de que o articulista jamais ingressou num fórum federal para ver o quanto se julga na apuração de crimes, autuações fiscais, desapropriações para reforma agrária, aposentadorias especiais, financiamentos habitacionais e indenizações por ato ilícito, tudo a envolver matéria de fato, coisa que implica horas e horas de audiências, perícias e depoimentos. Dezenas de juízes federais passaram boa parte dos últimos cinco anos colhendo provas em cartas de ordem para que o STF finalmente iniciasse o julgamento da Ação Penal 470 (Caso Mensalão). Nunca vi uma condenação criminal fundada em “matéria de direito”, mas talvez o articulista em seu ofício vicariante de promover justiça conheça algum caso e possa nos contar mais tarde.
Outra pirotecnia argumentativa é a de que a digitalização eletrônica por si só resolveria o congestionamento dos atuais tribunais federais. Substanciosa parte das causas federais já não usa papel e tinta, mas ainda assim a demora persiste. Talvez se olvide que por trás de cada byte de informação virtualizada estejam magistrados e servidores, pessoas de carne e osso que precisam ler, refletir e ponderar até decidir o que será do patrimônio, liberdade e às vezes até mesmo a vida das faces invisíveis das páginas eletrônicas. Se a digitalização realmente atuasse como a infalível pedra filosofal para a crise da Justiça Federal, a admissão de novos juízes deve ser imediatamente suspensa. Doravante eles serão admitidos dentre digitadores e programadores, preferencialmente contratados junto às empresas especializadas do ramo e tão mal remunerados que qualquer decisão sua sempre virá com a desconfiança do suborno.
Mas, como sempre há um pouco de água num copo vazio, não contive o riso ao perceber o entusiasmo do articulista, típico de quem inventou a pólvora ao propor que a Caixa Econômica Federal e o INSS, grandes litigantes da Justiça Federal, montem um sistema eficiente de solução extrajudicial ou se estruturem para prevenirem conflitos. Sou entusiasta da desjudicialização de alguns temas, mas creio que o país em que o promotor e o resto da população vive não é o mesmo. Fico a imaginar o banco abrindo mão de seu lucro e a Previdência Social afundar-se cada mais nos seus rombos orçamentários ao pagar aquilo que seu cliente e segurado entendem devidos. Parece até o velho doutor Pangloss, personagem de Voltaire, para quem vivíamos no melhor dos mundos.
Para encerrar, a velha cantilena da “reserva de mercado” para advogados e juízes. Certamente que os representantes do Ministério Público Federal, atuantes por dever no ofício de acusar, não se sentem confortáveis ao serem acusados de corporativismo cada vez que se cria uma vara ou um tribunal federal. Convido o articulista à leitura dos índices de satisfação de usuários das regiões em que a Justiça Federal concentra um menor número de estados e de causas. Para eles a tal “reserva de mercado” simplesmente não existe, porque continuarão a buscar a defesa de seus direitos nos mesmos profissionais de sua confiança. Afirmar o contrário é tão despropositado quanto impedir aos pacientes tratamento fora de seu domicílio.
Os mineiros não podemos ficar calados a esses discursos aparentemente recheados de números porém despidos de concretude.
Marcelo Dolzany da Costa é juiz federal em Belo Horizonte, ex-juiz da ONU em Timor Leste e também pesquisador em gestão judicial
Fonte: http://www.domtotal.com/noticias/607058
A reinvenção da roda
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